24 de abril de 2024

José Afonso, «Chamaram-me cigano»


Chamaram-me um dia cigano e maltês
Menino, não és boa rés abri uma covaNa terra mais funda fiz delaA minha sepultura entrei numa grutaMatei um tritão mas tiveO diabo na mão havia um comboioJá pronto a largar e viO diabo a tentar pedi-lhe um cruzadoFiquei logo ali num leitoDe penas dormi puseram-me a ferrosSoltaram o cão mas tive o diabo na mãoVoltei da charola de cilha e arnêsAmigo, vem cá outra vezSubi uma escada ganhei dinheiramaSenhor D fulano Marquês perdi na roletaGanhei ao gamão mas tiveO diabo na mão ao dar uma voltaCaí no lancil e veioO diabo a ganir nadavam piranhasNa lagoa escura tamanhasQue nunca tal vi limpei a viseiraPeguei no arpão mas tiveO diabo na mão


23 de abril de 2024

#25 poemas passados para português - #22


A mim o que me mata,

querido efebo, digo-te:

desejo sem prazer,

versos sem graça ou ritmo

e ceias só com chatos.


Arquíloco (, Jónia, Séc. VII a. C.)

in Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos (1972)

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - XII

 

O AMOR E A MORTE - MONÓLOGO A DOIS


Sábia talvez inconsciente,

Doseando, com volúpia, uma ancestral sofreguidão,

Ali onde o desejo mais me dói, mais exigente,

Me acaricia a tua mão.

 

De olhos fechados me abandono, ouvindo

Meu coração pulsar, meu sangue discorrer,

E, sob a tua mão, na asa do sonho, eis-me subindo

Àquele auge em que todo, em alma e corpo, vou morrer…

 

--- Filho do Homem, 1961


21 de abril de 2024

Pelo Tejo vai-se para o mundo (03)

 BAPTISMO

Cada anoitecer volto a ler as tuas cartas
que nunca me escreveste e guardo nas gavetas
transparentes para os ladrões não as encontrarem
- como observar o ar no ar, a luz na luz?
No interior do passado há muitos passados,
muitas memórias a ramificarem como
pequenos capilares do tempo. Lembrança
também é tudo aquilo que nunca chegámos
a viver, a ver e a dizer um ao outro,
tudo o que ficou levemente colado
ao coração, qual pestana prestes a voar.
Não é por estarem mortas antes de nascerem
que as almas já não são almas. Nem as palavras
palavras. Faltou-lhes apenas a água fria
do baptismo e alguém que acreditasse nelas.



Gemma Gorga (1968) em Resistir Ao Tempo - antologia de poesia catalã (edição bilingue)
Organização e tradução do catalão: Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Sion Serra Lopes
Assírio & Alvim
1ª edição, Junho de 2021
Página 585

19 de abril de 2024

JOSÉ RÉGIO: 11 OBRAS, 22 POEMAS - XI

 

O AMOR E A MORTE – POEMA

 

Crispou-se a minha mão sobre o teu sexo.

Fecharam-se-me os olhos sem querer…

De que abismos voava até ao fundo?

E a minha mão sondava

E triturava

Aquele mundo

Tão pequenino e tão complexo:

O teu mistério de mulher.

 

--- Filho do Homem, 1961


17 de abril de 2024

POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL. XXIV

 

O PALÁCIO DA VENTURA


Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante,

O palácio encantado da Ventura.


Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, rota a armadura...

E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!


Com grandes golpes, bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...

Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!


Abrem-se as portas d'ouro com fragor...

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão - e nada mais!


Antero de Quental, Sonetos



101 poemas portugueses - #35


QUASE


Um pouco mais de sol -- eu era brasa.

Um pouco mais de azul -- eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

 

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído

Num baixo mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho -- ó dor! -- quase vivido...

 

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim -- quase a expansão...

Mas na minh'alma tudo se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!

 

De tudo houve um começo... e tudo errou...

-- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... --

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou...

 

Momentos de alma que desbaratei...

Templo aonde nunca pus um altar...

Rios que perdi sem os levar ao mar...

Ânsias que foram mas que não fixei...

 

Se me vagueio, encontro só indícios...

Ogivas para o sol -- vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...

 

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...

 

...............................................................

...............................................................

 

Um pouco mais de sol -- e fora brasa,

Um pouco mais de azul -- e fora além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 - Paris, 1916),

Dispersão (1914)

14 de abril de 2024

101 poemas portugueses - #34


Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.

Fernando Pessoa (Lisboa, 1888-1935),
Álvaro de Campos -- Livro de Versos
(edição de Teresa Rita Lopes)

10 de abril de 2024

25 poemas passados para português - #21


TRABALHAR CANSA


Atravessar uma rua para fugir de casa

só um rapaz é que o faz, mas este homem que vagueia

todo o dia pelas ruas já não é um rapaz

e não está a fugir de casa.

                                             Há tardes

no verão em que até as praças ficam vazias, estendidas

sob o sol que está prestes a pôr-se, e este homem, vindo

por uma alameda de inúteis plantas, pára.

Vale a pena estar sozinho, para se estar cada vez mais sozinho?

Vaguear por elas apenas, as praças e as ruas

estão vazias. É preciso travar uma mulher

e falar com ela e convencê-la a viver a dois.

Ou então fica-se a falar sozinho. Daí que por vezes

haja o bêbedo nocturno que mete conversa,

e conta os projectos de uma vida inteira.


Não é certamente aguardando na praça deserta

que se encontra alguém, mas quem vagueia pelas ruas

detém-se por vezes. Se fossem dois,

mesmo a andar pela rua, a casa seria

onde está aquela mulher, e valeria a pena.

Volta a praça a ficar deserta à noite,

e este homem, que passa, não vê as casas

entre as luzes inúteis, já não ergue os olhos:

sente apenas a calçada, que outros homens fizeram

com mão endurecidas, como são as suas.

Não é justo ficar na praça deserta.

Andará com certeza pela rua a mulher

que, rogada, daria com gosto um jeito na casa.


Cesare Pavese (Santo Stefano Belbo, Piemonte, 1908 - Turim, 1950),

Trabalhar Cansa (1936)

Versão de Vasco Gato, Lisboa, 1978) 


 original

8 de abril de 2024

101 poemas portugueses - #33


AMOR-METEORO


Encontrei-a no cais, ao embarcar,
E, após um curto olhar retribuído,
Tão preso me senti, tão seduzido,
Que até como isto foi nem sei contar.

Só sei que agradeceu o meu olhar
Com outro mais gentil e enternecido,
E que fiquei em terra possuído
De um ódio torvo e estranho contra o mar.

Não mais em minha face inconsolável
Demorará seus olhos de veludo!
Não mais aquele instante inolvidável!

Um protesto de amor ardente e mudo,
Um sorriso, uma dor incomportável,
Um triste volver de olhos... e foi tudo.


Ed. Bramão de Almeida (1887-?), 
Maré Alta (1934)

5 de abril de 2024

o início de O MEU TIO DE NANTES

«Os ossos vão em caixinhas para Lisboa, para o Porto, para Coimbra.» Carlos Daniel, O Meu Tio de Nantes, Fundão e Amadora, Jornal do Fundão / Canto Redondo, 2023, p. 9.

4 de abril de 2024

25 poemas passados para português - #20


FIM DO MUNDO


Salvo sem pressa um

cristal de rocha, uma

medalha; salvo um verso

e uma pluma no ar;

um cheiro a pão,

uma janela sobre o nada

aberta de par em par.


Ángel Crespo (Alcolea de Calatrava, 1926 - Barcelona, 1995)

30 Poemas (1984)

versão de Eugénio de Andrade (Póvoa de Atalaia, Fundão, 1923 - Porto, 2005)

3 de abril de 2024

 O MEU TIO DE NANTES


"Nós íamos a pé para os aterros do rio e demorávamos mais de uma hora a chegar lá, troc, troc, por aquelas veredas abaixo e ele no seu cestinho de vime à cabeça da tia Teresa que já teria para aí uns dezoito ou dezanove anos (... ...) Depois pousava-o numa sombra, ou embrulhadinho em cobertores, no pino do inverno,  e quando ele chorava muito ela dizia-me assim: «Ó Gilda toma lá conta dele que tu és ainda muito pequenina para andares aqui com as perninhas dentro desta água tão fria o dia inteiro.» E às vezes era eu que ficava com ele ao colo. Eu acho que ele chorava de fome, coitadinho, e eu abanava-o, abanava-o até a tia Teresa ter outra vez um bocadinho de leite para ele mamar porque ela tinha muito pouco leite. Ó filho, quando hoje me lembro disto tudo até me parece que aquilo não pode ter acontecido: irmos três garotas, no pino do frio e do calor, para o Cabeço do Pião com uma merendita para o dia inteiro e a tia Teresa com aquela cestinha de vime à cabeça, com o Floriano lá dentro, que veio a casar com uma Palmira de Moncorvo e eram primos da Fernanda do Lúcio que trabalhava na Câmara do Barreiro e que o marido a deixou. E passávamos o dia inteiro a arear, a arear dentro do rio... e aquele menino à cabeça para trás e para diante.

Ai filho(...)"

(Pg. 79-80)


Este belíssimo livro, que se lê com gula e deleite, é assinado por Carlos Daniel. Contudo, podemos afirmar que a verdadeira autora é a Senhora sua Mãe, Dona Gilda, que em grande parte lho 'ditou', através de longos telefonemas ou em conversas dispersas ao longo da vida. A Carlos Daniel coube a meritória tarefa de, com talento e arte, converter os monólogos telefónicos e os pitorescos relatos da anciã em belíssimas peças de prosa.  

Um abraço de parabéns, Carlos Daniel. Antevejo uma sessão animada e enriquecedora, na qual, com muita pena minha, não poderei estar presente. 

F. Faria



1 de abril de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES - #31


SONETO DA VISITAÇÃO


Vinde, adorai! Criados e parentes!
Tenho o presépio em nossa casa armado.
Vinde adorar o meu menino amado,
Honrá-lo com carinhos, com presentes!

Muito quietinho, nas roupinhas quentes,
O infante dorme, dorme aconchegado.
É lindo, pois não é? o meu morgado?
Que tu, Senhor, em graça mo aviventes!

E, de joelhos, com um ar de boda,
Adora e pasma-se a assistência toda,
Como diante dum festivo altar.

Que perfeição! Que enlevo de criança!
-- E pedem num louvor que não descansa
Que Deus nos dê saúde p'ra o criar.

António Sardinha (Monforte, 1887 - Elvas, 1925)
A Epopeia da Planície (1915) /
/ Líricas Portuguesas - 2.ºªSérie
(edição de Cabral do Nascimento)

29 de março de 2024

101 POEMAS PORTUGUESES - #30


CANÇÃO DO NU

Lindo
Mármore precioso que na alcova
Surpreendi dormindo!
E lindo
À luz dum fósforo, acendido a medo,
Despertou sorrindo.
E, lindo,
Dos olhos as meninas me saltaram
Para o nu que se estava descobrindo.

Linda!
Ficou-se ao desgasalho adormecida,
Ai vida,
Como ainda não vi coisa tão linda.

Linda,
Braços abertos em desnudo amplexo,
Seu corpo era uma púbere mendiga,
E ele é que estava pedindo,
Lindo,
O meu sexo.


Afonso Duarte (Ereira, Montemor-o-Velho, 1884 - Coimbra, 1958),
Rapsódia do Sol-Nado seguido de Ritual do Amor (1916)

28 de março de 2024

"FORMULAÇÕES POÉTICAS", apócrifo da série em curso neste blogue


«(…) toda a poesia consiste fundamentalmente no desgosto que o homem tem sempre pelo que ainda é e nos seus braços estendidos para o que quer ser; consiste fundamentalmente na tal reconstrução sobre si próprio, no seu desejo eterno de ser mais, que é como quem diz: melhor.»

– Dissertação de licenciatura de MÁRIO DIONÍSIO, “Introdução à leitura da ‘Ode Marítima’", apresentada em 1938 à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 

O candidato foi reprovado no exame.  


26 de março de 2024

101 poemas portugueses - #29


VIDA VITORIOSA


Foi uma vida vitoriosa, é certo,

A vida que vivi nesta jornada,

-- Não da vitória que se vê de perto,

E que se alcança, apenas desejada.

 

Não do triunfo que sorri, incerto,

E logo é fumo, e é pó, e é cinza, e é nada,

-- Mas doutra glória que ao meu peito aperto,

E só eu vejo, pura e recatada.

 

Porque em silêncio conquistei, lutando,

-- Quantas vezes perdido e miserando,

Quantas vezes vencendo a própria dor --

 

Esta alegria de passar na vida

Sendo uma força, que jamais duvida,

E uma voz clara, como a Voz do Amor!


João de Barros (Figueira da Foz, 1881 - Lisboa, 1960),

Vida Vitoriosa (1919)

24 de março de 2024

o início de O TEMPLO DOURADO

«Desde a mais tenra infância, o meu pai falou-me do Templo Dourado.» 
Yukio Mishima, O Templo Dourado [1956], trad. Paulo Faria, Porto, Livros do Brasil, 2020, p. 11.

23 de março de 2024

101 poemas portugueses - #28


A DOR DAS PEDRAS 


Ó pedras a sofrer, em ânsias, nas calçadas,
Ninguém vos sabe amar, ninguém de vós tem dó,
Ninguém sabe entender, ó pedras desgraçadas,
Que há lágrimas também dentro do vosso pó!

Passam, por sobre vós, tanta dor e alegria,
Olhos em que há prazer, olhos em que há tormento,
E ninguém vos consola e queima-vos o dia
E, quase sempre a rir, insulta-vos o vento!

E ninguém sabe ver que pode o infinito
Duma dor existir numa pedra do chão;
Que pode acontecer que um palmo de granito
Sofra, por vezes, mais que um grande coração.

E vós continuais sofrendo a vossa cruz,
E eu vejo-vos lançar um clarão para os Céus,
Como um grande protesto: ó pedras, essa luz
O que é que vai dizer ao ouvido de Deus?

Eu sei que vós falais a Deus dessa maneira:
Vossa palavra é luz, só Deus pode entendê-la:
Há dentro em vós, talvez, uma via-láctea inteira,
Porque, em sentindo dor, sai de vós uma estrela...

Ó pedras, esperai, que talvez um vulcão
Vos lance para o Céu, num abalo violento,
E lá pode falar o vosso coração
E alguém compreender o vosso sofrimento!

João Lúcio (Olhão, 1880-1918),
Descendo (1901) / 
Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas - 2ª. Série

21 de março de 2024

 POEMAS IMORTAIS - UMA SELECÇÃO POSSÍVEL, XXIII


A VIDA

A vida é o dia de hoje,

a vida é ai que mal soa,

a vida é sombra que foge, 

a vida é nuvem que voa,

a vida é sonho tão leve

que se desfaz como a neve

e como o fumo se esvai:

a vida dura um momento,

mais leve que o pensamento,

a vida leva-a o vento,

a vida é folha que cai.


A vida é flor na corrente,

a vida é sopro suave,

a vida é estrela cadente,

voa mais leve que a ave:

nuvem que o vento nos ares,

onda que o vento nos mares

uma após outra lançou,

a vida - pena caída

 da asa de ave ferida - 

de vale em vale impelida,

a vida o vento a levou.


JOÃO DE DEUS

20 de março de 2024

#25 poemas passados para português - #19.


COM O TEMPO A SABEDORIA


Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;

Ao longo dos enganadores dias da mocidade,

Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;

Agora posso murchar no coração da verdade.

original aqui


W. B. Yeats (Dublin, 1865 - Menton, 1939)

versão de José Agostinho Baptista (Funchal, 1948)

18 de março de 2024

101 poemas portugueses - #27


Porque as mães sempre amaram tudo quanto
Chora de baixo, ou pede algum perdão,
Quer seja a flor, que sofre em qualquer canto,
Seja a raiz, às cegas pelo chão.

E mortas -- não lhes morre ao pé um pranto,
Que elas não sequem com a sua mão,
-- Mesmo quietinhas, inda afagam tanto,
Mesmo geladas, que calor não dão!

Basta que à tarde, pequenino e estreito,
Um fio d'água passe por seu peito,
Logo julgam, de novo, os peitos cheios;

De modo que não há por todo o solo,
Miséria, que não durma no seu colo,
Desgraça, que não mame no seu seio!

Nunes Claro (Lisboa, 1878 - Sintra, 1949)
A Cinza das Horas (1928)

16 de março de 2024

101 poemas portugueses - #26


RELÍQUIA


Era de minha mãe: é um pobre chale
Que tem p'ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
Da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
Deixo os meus dedos p'ra senti-la ainda;
E Ela vem, é ela que me abraça,
Fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe, mais perto, mais pertinho,
Que eu sinto quando toco o velho chale
Que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
Sinto ao tocá-lo como alguém que embale
E beije a minha sede de amor puro.


António Patrício (Porto, 1878 - Macau, 1930),
in Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas - 2.ª Série

13 de março de 2024

25 poemas passados para português - #18


OS ARAUTOS NEGROS


Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!

Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!
 
Poucas; mas acontecem... Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.
 
São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o Destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que na porta do forno se nos queima.
 
E o homem... Pobre... Pobre! Volta os olhos, como
quando sobre o seu ombro uma palmada o vem chamar;
volta seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.
 
Há pancadas na vida tão fortes... Eu sei lá!


César Vallejo (Santiago de Chuco, Peru, 1892 - Paris, 1938),
Antologia Poética, versão de José Bento.

10 de março de 2024

101 poemas portugueses - #25


ROSAS SEM ESPINHOS


Esta rosinha de Assis,
sem espinhos, que eu de lá trouxe,
murcha, luminosa e doce,
no seu leve aroma diz:
-- Uma vez tentado foi

o Santo pla carne inquieta;
eis que o desejo lhe dói
numa agonia secreta.


E com a sede dos beijos
e dos ardentes carinhos,
arroja o corpo em desejos
às rosas cheias de espinhos!


Mas nós, quando então o temos
no abraço deste rosal,
os espinhos recolhemos
para lhe não fazer mal.


Afonso Lopes Vieira (Leiria, 1878 - Lisboa, 1946)
Um Ramos de Rosas - Colhidas por José da Cruz Santos na Poesia Portuguesa e Estrangeira

7 de março de 2024

25 poemas passados para português - #17.


MULHER


Não saíste, Mulher, inteiramente,

Das mãos de Deus! A sede e a formosura

Dos homens completam a figura

Divina que tu és, -- eternamente.

 

O amor do homem, na ansiedade ardente,

Vestiu de glória a mocidade pura

Da tua vida. Para ti procura

Um canto o Poeta, infatigàvelmente.

 

Sem descanso, o pintor, numa ansiedade,

Às tuas formas dá actividade,

Para adornar teu corpo alvo e risonho.

 

Jardins, o mar e a terra abrem o seio,

Dão-te oiro, flores, pérolas, enleio...

 

-- És metade Mulher, metade Sonho!

 

Rabindranath Tagore, (Jorasanko Takurban, Calcutá, 1861-1941)

 Poesias de Tagore (O Músico e o Poeta)

versão de Augusto Casimiro (São Gonçalo, Amarante, 1889 - Lisboa, 1967)

6 de março de 2024

o início de CINCO DIAS, CINCO NOITES

 

«Com 19 anos incompletos, André viu-se forçado a emigrar.»

Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites [1975], Lisboa, Editorial «Avante!», 1994, p. 9.

4 de março de 2024

15 formulações poéticas - #14. José Tolentino Mendonça

 «[...] creio que é o silêncio que escreve o poema. As palavras estão lá para o testemunhar. Porque o poema não é a evidência, mas a interrogação, a sugestão, a lacuna, a fenda, a porta entreaberta, a possibilidade de viagem para cá e para lá dele.»

3 de março de 2024

101 poemas portugueses - #24.


CANÇÃO DUMA SOMBRA 


Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha, para ouvir a voz das cousas,
                    Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol que eu comungo de joelhos,
                     Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida e se inflitrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
                    Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse o vento, que embalou
Meu coração e as nuvens, nos seus braços,
                    Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
                    Eu não era o que sou.


Teixeira de Pascoais (Amarante, 1877 - Gatão, 1952),

As Sombras (1907) / Antologia Poética

(ed. por Ilídio Sardoeira)